domingo, 15 de abril de 2012

Símbolos Perenes e Transformação Pessoal

A Alquimia foi sempre, essencialmente, um universo prático. O século XIX é um século de transição, e embora houvesse quem praticasse alquimia numa filiação operativa, ainda no início do século XX, a alquimia começa a ser matéria especulativa. As pessoas começam a pensar o que é a alquimia, mas é evidente que isso só demonstra que os alquimistas, tal como eram conhecidos até meados do século XIX, já tinham desaparecido. Nessa altura, só raríssimos alquimistas, ou hermetistas, na Europa, podiam continuar a transmitir um saber coerente em relação a textos originais, garantindo uma linha de transmissão relativamente à tradição europeia da alquimia.

A questão é tanto mais complicada, quando hoje se sabe que a alquimia não é um fenômeno europeu. Quando pensamos na alquimia, tendemos a pensar naqueles sábios de barbas à volta de uma série de instrumentos de vidro, a destilar substâncias estranhas, em busca da Pedra Filosofal. Aliás, no século XVIII e XIX, alguns pintores resolveram imaginar como seria o laboratório de um alquimista. Mais ou menos inspirados no progresso da química, fantasiaram o laboratório do alquimista como uma sala cheia de plantas penduradas, esqueletos, muitas retortas e destiladores, e o alquimista aparecia com um ar alucinado, a ver se a pedra filosofal saía dali. Nessa época, as pessoas achavam que o alquimista era mais ou menos um químico, mais ou menos alucinado, que andava à procura, dentro da retorta, de um mito mais ou menos irrealizável. A partir de Lavoisier, resolveu-se dizer que a alquimia era uma fábula, vinda sobretudo da tradição dos metalúrgicos antigos, isto é, dos primórdios da pré-história da química, tanto no Ocidente com no Próximo Oriente, como era o caso do Egipto. Mas também se sabe que as civilizações do Mediterrâneo, da China e da Índia, foram civilizações de grandes químicos, desde pelo menos há dois ou três mil anos. Elas produziam algo que foi, e é, equivalente à nossa tradição química ocidental, no sentido científico do termo. Nos séculos XVIII-XIX, quando surge a imagem do laboratório do alquimista, começa a haver a primeira preocupação dos estudiosos sobre como seria, de facto, o laboratório do alquimista. É evidente que quem assim o concebe, um laboratório fabuloso e imaginário, nunca viu um laboratório de alquimista. De facto, esse laboratório nunca foi nada do que foi descrito pelo imaginário da época.

Porque é alguém resolvia praticar alquimia ? Qual era o fascínio e a tentação ? Na Idade Média, havia reações contraditórias face à alquimia, à astrologia e disciplinas afins. Por um lado, havia o receio dessas disciplinas, que vinham do passado, da Antiguidade Clássica, serem uma ameaça aos princípios da teologia cristã, católica, porque essas disciplinas eram consideradas uma espécie de reminiscência pré-cristã, pagã, que vinham perturbar a ordem estabelecida. Graças a S. Tomás de Aquino, e outros, fora construído num edifício pré-estabelecido de relacionamento do Homem com Deus e com a Natureza, achando-se que esses modelos e paradigmas de interpretação do mundo, e da relação do homem como universo, que vinham da Antiguidade, traziam instabilidade à fé cristã e aos seus crentes e praticantes. A Igreja dividiu-se sempre entre uma igreja culta, um sector minoritário, que olhava para esses saberes, como saberes que podiam ser integrados dentro do universo cristão, e outro sector, bastante mais conservador, aterrorizado com qualquer perturbação do sistema, que resolveu renegar a alquimia, a astrologia, a prática do hermetismo em geral, e que vinham de um substrato popular de raiz não erudita . A cabala judaica na Europa, a alquimia, a astrologia eram práticas muito hostilizadas pelo sector mais conservador da Igreja de Roma. Muita coisa foi destruída nessa guerra contra a heresia.

No Ocidente, a primeira transmissão de tratados de alquimia chegou por mãos árabes. Há aqui duas correntes : uma, que vem do Oriente, pelo interior da Europa ; outra, que também vem do Oriente, no sentido de que a luz vem do Oriente, por via da cultura árabe. Foram os árabes que começaram a traduzir, não só as obras dos alquimistas árabes, mas sobretudo dos gregos – e nem se supunha que tivesse havido alquimistas na Grécia. É claro que existem imensos manuscritos, e uma tradição alquímica que chegou aos árabes graças a gerações e gerações de pessoas que foram reescrevendo e copiando os manuscritos e textos originais. Foi graças a gerações sucessivas, abarcando pelo menos dois mil anos de cultura, que muitos textos foram reproduzidos. Eram elementos de inspiração para aqueles que queriam abordar, pela primeira vez, a alquimia, ou para os que se sentiam fascinados, ou chamados, por esse saber estranho, a alquimia, que estabelecia uma espécie de relação física e orgânica entre o Homem e o Universo.

As grandes religiões defendiam que existe um mundo natural e outro sobrenatural. Ora, a alquimia, tal como a tradição hermética, diz que não há dissociação entre o “mundo natural” e o “mundo supranatural” ; não existe divisão entre espírito e matéria. Para as religiões tradicionais, nomeadamente o cristianismo, este postulado é uma autêntica subversão. Uma disciplina que vem dizer que “podemos provar fisicamente que não existe diferença entre espírito e matéria” é a maior das heresias. É evidente que para os alquimistas de filiação tradicional, o primeiro passo da sua auto-iniciação, era provar a si próprios, não apenas no domínio da sua própria consciência e do seu próprio ser, mas também no laboratório, no domínio físico, que espírito e matéria são indissociáveis, que natureza, espírito e matéria não são dissociáveis.

Qual é, então, o fascínio que a alquimia exerce sobre pessoas tão inteligentes, ao longo dos tempos ? Reis, príncipes, cardeais, nobres, burgueses e tantos outros, sentiram-se fascinados ou chamados a ela. Aceitaram o desafio de provar que, não só no seu próprio campo de consciência, não havia divisão entre espírito e matéria, entre consciência e mundo, entre consciência e natureza, como também fisicamente, na natureza, não havia divisão entre espírito e matéria, ou seja, o espírito e a matéria eram indivisíveis na própria natureza.

As religiões tradicionais, nomeadamente a tradição judaico-cristã, afirmavam que Deus criou o mundo em sete dias, depois deixou-o à sua sorte, ficando no céu a ver o espectáculo da criação. As teologias tradicionais separam o que é divino do que é mundano, o sagrado do profano – e toda a economia religiosa gira em torno desta separação. Separando o divino do não divino, o sagrado e o profano, é evidente que estão criados os ingredientes fundamentais da velha problemática do bem e do mal. As religiões precisam de uma separação entre consciência e corpo, no homem, entre espírito e matéria na natureza, para poderem desenvolver uma teologia do bem e do mal. Só numa perspectiva dualista, de divisão, é que se pode estabelecer uma teologia do bem e do mal. Mas se se considerar um modelo monista, integral, de que a consciência e o mundo, espírito e matéria, estão intrinsecamente integrados e são um só, obviamente não se pode estabelecer uma teologia do bem e do mal.

A alquimia punha, à partida, este desafio : todos nós fomos educados na teologia do bem e do mal, da culpa e da redenção, todos nós fomos sobrecarregados com este fardo desde que nascemos, como é podemos resolver o problema de outra maneira ? Este desafio encontra-se também na alquimia hindu, de tradição védica, na alquimia chinesa, onde os alquimistas mais conhecidos são os taoístas, os “monistas” da China, que acreditam na unidade entre espírito e matéria, consciência e corpo, no homem, numa unidade psico-somática.

A alquimia é um saber transmitido oralmente, de boca a ouvido, de mestre a discípulo. Quando, nas várias civilizações e tradições, se encontram textos escritos de alquimia é porque se está perante um saber de transmissão oral que se está a perder e, como tal, os últimos detentores desse saber passam-no a escrito, para que ele não se perca definitivamente. Uma forma de “escrita” empregue no Ocidente tem a ver com a construção das catedrais. A catedral era um convite ao cidadão da rua a conviver com o sagrado, pois seduzia com a sua monumentalidade e pela liturgia simbólica. As pessoas olhavam e achavam que havia ali um mistério. Estes monumentos de pedra, uma verdadeira consagração aos mistérios da divindade, são construções que sobem da terra ao céu, são uma espécie de explosão de inspiração em pedra. Nas primeiras catedrais, como Notre Dame e Chartres, entre outras, encontra-se pela primeira vez toda a tradição da alquimia gravada em pedra. A Catedral de Notre Dame, desde o portal, passando pela estrutura lateral até ao interior, é, toda ela, um manual prático da alquimia. É por isso que Notre Dame, construída nos séculos XIII-XIV, começou a ser um ponto de peregrinação para todos aqueles que procuravam redescobrir os grandes símbolos da alquimia, enquanto técnica operativa. Há uma quantidade razoável de manuscritos, a partir dos séculos XVII-XVIII, que descrevem em pormenor como é cada símbolo corresponde à visão, às técnicas e à operacionalidade da alquimia. Quando um saber como o da alquimia é gravado em pedra, é sinal que havia uma tradição que estava a morrer e em vias de se perder. Curiosamente, a maçonaria surge na Europa, com grande vivacidade, nos séculos XVII e XVIII, reivindicando-se justamente daquela elite de arquitectos iluminados que construíram as catedrais, ou seja, das guildas de construtores de catedrais – os pedreiros-livres, que vinham da tradição dos grandes artesãos da Idade Média, e que tinham uma imensa liberdade em recriar o seu trabalho e de introduzir elementos de criação, numa época em que a criação não era muito bem vinda, sobretudo no universo das representações dos mistérios divinos. No que se refere à tradição dos pedreiros-livres, que surge com grande vigor no século XVIII, fazem-se ainda descobertas notáveis. Em livros ilustrados do século XVIII , vê-se como a decoração de algumas lojas maçônicas recuperam os símbolos da tradição alquímica.

Encontramos a alquimia na China, na Índia, na Mesopotâmia, no Egipto, na tradição judaica. Encontramos alquimia em todas as grandes tradições, justamente porque a alquimia representava esse desafio “herético”, é uma provocação à cultura dualista de cada época. As grandes religiões e o poder instituído diziam que existia um poder no alto, que é diferente dos que estão em baixo ; existe um poder no alto que é Deus, e em baixo existe a natureza ; existe um poder no alto que é o espírito, em embaixo existe a matéria ; existe um demiurgo em cima, e o resto é criação. Não é por acaso que este tipo de pensamento é o sustentáculo dos poderes instituídos, exatamente porque cria a divisão nas sociedades. Na Índia, por exemplo, a sociedade está dividida em castas – uma verdadeira discriminação social e manutenção de privilégios, baseada no princípio quaternário, o dos quatro elementos. O algarismo 4 é o número do quadrado que representa a divisão natural do mundo criado. Se há imagem que representa o mundo criado, ou a estrutura organizada do universo, é o quadrado. Por outro lado, a dinâmica da consciência é representada pelo círculo. A relação entre consciência e o mundo, entre Deus e a Natureza, entre mente e corpo, era representada justamente por estes dois princípios : o círculo e o quadrado.

Diz-se que o alquimista não inventa rigorosamente nada, limita-se a seguir os passos da natureza. O alquimista é um imitador da natureza, um fiel “imitador da natureza”. A alquimia surge, em qualquer época e civilização, como uma ajuda, na observação atenta do que se passa na natureza. E a primeira observação tem a ver como é que se consegue, por meios simples, provar que, na natureza, não é possível separar o espírito da matéria. Em nós, observamos um “eu”, entidade mental e afetiva, e o corpo. O corpo é matéria, é criação, é natureza. Mas prezamos acima de tudo o “eu”, que não é igual a Deus. Eu não sou Deus, não sou Natureza, mas sou um pequeno “eu”, ou consciência psicológica, um “euzinho” que aspira a ser Deus, mas carece de asas para lá chegar, e que tem a pretensão de conhecer a natureza. O “eu, a consciência psicológica, é uma entidade altamente frustrada, que não consegue compreender nem os mistérios de Deus nem os mistérios da Natureza. Por definição, o essencial escapa à consciência psicológica.

O alquimista segue os passos da Natureza, tantas vezes representada por deusas da fecundidade, do princípio da criação, das coisas fecundas, da reprodução generosa, da multiplicidade. A natureza não é apenas sagrada, mas também generosa. Essas deusas representam a Primavera, e o que faz o alquimista atrás da Primavera ? O alquimista quer saber como é que a natureza se reproduz, essa é a primeira curiosidade do alquimista, saber como as coisas se reproduzem. A natureza não constrói as coisas de qualquer maneira, ela germina segundo determinados padrões. O alquimista tinha de ver como é que a natureza, e tudo à sua volta, se reproduz. Isto tem a ver com outra função do alquimista, que era a preocupação com a origem e reprodução do ser humano em laboratório. Era a velho teoria do homúnculo, hoje em dia glosada com a reprodução “in vitro” e a clonagem, entre outras, que eram velhos sonhos dos alquimistas. Conhecer as leis da criação do humano, do vegetal, do animal, de qualquer coisa ; conhecer como é que as coisas são criadas. Será que o ser humano pode aprender as leis da criação, aprendendo como o Criador cria ? Na alquimia taoísta, na China, na alquimia egípcia, e em todo o lado, os alquimistas têm uma espécie de simbólica, um pacto fundamental do mistério da alquimia, que é a criação do ser em laboratório. Mas afinal, o que queriam os alquimistas ? Queriam conhecer e compreender as leis da criação, reproduzir os métodos do Criador, queriam o segredo de um princípio gerador. E que princípio era esse ?

Para o alquimista a natureza é uma estrutura orgânica, uma estrutura viva, quer se trate de uma pedra ou de um planeta. De acordo com a visão do alquimista, uma pedra é parte do mistério da consciência, do mistério da vida. Ou seja, aquela linha que divide e separa o vegetal do animal, ou do mineral, não existe na alquimia. No pensamento tradicional da alquimia não existe a divisão entre orgânico e inorgânico, eliminando assim qualquer contradição entre eles. Nesta visão, existe um elemento comum orgânico e inorgânico. No pensamento alquímico, uma pedra não é orgânica nem inorgânica, é outra coisa. Habituados que estamos em raciocinar em termos de hemisfério direito e esquerdo, perdemos de vista que laboramos na base de uma estrutura dualista de pensamento. Qualquer informação que vem pelos sentidos é imediatamente processada como dualidade.

É possível provar que Deus e a Natureza são uma e a mesma coisa, e são inseparáveis. Deus não descansou ao sétimo dia. Tudo aquilo que a consciência criou, nela ficou intrinsecamente implicada, nessa criação. O criador não criou a natureza e separou-se dela. O criador e a natureza são uma e a mesma coisa. A consciência e o mundo são uma e mesma coisa. A proposta da alquimia é descobrir, por meios materiais, por meio do laboratório, por meio da experimentação, a comprovação desse mistério, que é aquilo que tradicionalmente se chama a Pedra Filosofal – a comprovação em laboratório de que o criador e a criação são inseparáveis.

O equinócio da Primavera, que é celebrado na Páscoa, assinala o mistério da morte e ressurreição, uma ressurreição gloriosa. Na Primavera, há três meses chamados “meses equinociais”. Todos os alquimistas sabiam que a partir da divisão do ano em equinócios e solstícios, era possível imitar a natureza. O que é que acontece na Primavera ? Existe um ímpeto irresistível de reprodução das espécies. No final do Inverno, as sementes começam a germinar e, na Primavera, há uma verdadeira explosão de matéria verde. Os animais, em geral, começam o seu ciclo de reprodução. Muitas vezes, os seres humanos são arrastados nesse tipo de entusiasmo e também se lançam na aventura da reprodução. Na Primavera, a biologia está muito mais ativa – é como se houvesse uma onda vital de fundo na natureza que percorre transversalmente toda a criação, todo o universo, todo o cosmos. A questão, para os alquimistas, era a seguinte : o que é que reproduz este ímpeto ? Porque é a natureza explode nesta espiral criativa ? Que força é esta, independente das explicações meteorológicas, do sol começar a subir cada vez mais no horizonte, dos dias irem ficando mais longos e quentes, até finalmente chegarmos ao dia mais longo do ano, quando o sol atinge o zênite, no solstício de Verão ? Os alquimistas viram que a Primavera representava algo extremamente importante : mas onde, na terra ou no céu ? Eles sabiam que a natureza, toda a atmosfera planetar, aquilo a que chamamos “a atmosfera respirável do planeta”, e não só, ficava saturada de um tipo de energia muito especial, que não ocorre em qualquer outra parte do ano. Há, com os equinócios e os solstícios, um ciclo, um pulsar do ano. É na Primavera que se manifesta esse princípio, que nos leva a perguntar : “Que princípio é esse que o demiurgo, que o criador, usou para criar e dar vida às coisas ? “. Os alquimistas disseram : “Esse mistério físico, químico, biológico, da criação pode ser descoberto na Primavera”. Como é que o alquimista resolve este mistério ? Os alquimistas diziam o seguinte : “Se, nos três meses da Primavera, a atmosfera do planeta fica saturada de um princípio vital, de um tipo completamente novo, que se reflete nessa explosão de criação a nível do planeta, sobretudo em determinadas latitudes, então, inventemos um suporte, uma espécie de acumulador de energia, que fique completamente saturado dessa energia. Inventemos um material acumulador, do tipo de uma pilha, que fique completamente carregado dessa energia”. Estes processos laboratoriais são os processos de saturação, que reforçam o princípio de saturação, até a matéria de base seja puramente transfigurada, se transforme naquele ponto em que espírito e matéria se revelam experimentalmente, em laboratório, como uma e a mesma coisa.

O que se passa na natureza, passa-se no homem, ou como dizia Hermes Trismegisto : “O que se passa em cima, passa-se me baixo ; o que está em cima, é como o que está em baixo”. Portanto, é estabelecendo uma relação de saber entre o céu e a terra, que as coisas se podem organizar num processo de transfiguração, e de experimentação de que espírito e matéria são indivisíveis, tanto no homem como na natureza. O princípio material transfigura-se na sua própria luz. Que princípio é esse ?

As gotas do céu, o orvalho, os elementos vitais do céu vão caindo sobre a terra, sobre a natureza, e vão tornando-a fecunda. Isto quer dizer que há um elemento de consciência no ser humano, algo no ser humano que torna fecundo o seu coração. E, desse princípio celeste, que é estranho às quatro estações, mas que age sobre elas ; caem gotinhas que tombam sobre o coração. O coração começa a brotar como se fosse uma semente, um bolbo, um elemento vegetal. Há um princípio de germinação, que uma vez tocado, e ao agir sobre o coração humano, provoca uma transformação no campo de consciência. Que coração é este ? Segundo a tradição, o coração é o órgão, um músculo com sístole e diástole. Se estou apaixonado, o coração aumenta o seu ritmo. Diz-se muitas : “Segue os ditames do coração”. Na tradição medieval e mesmo popular, “seguir os ditames do coração” significa que, quando tiveres medo, evita fazer qualquer coisa, porque o medo guarda a vinha. O barômetro cardíaco altera-se com uma enorme rapidez, na experiência das sensações. Portanto, tudo o que é informação visual, auditiva, cutânea, tudo são sensações ligadas à experiência dos sentidos altera o ritmo cardíaco. Na tradição alquímica, o coração era um órgão nobre, tanto biológica como fisiológica e organicamente. Mas, mais nobre é a função do órgão, ou seja, aquilo que está por detrás do órgão, aquilo que criou o órgão.

Esta perspectiva é muito interessante. Dizemos “nós vemos”. mas, nesta perspectiva, não é o olho que vê. Alguns alquimistas fizeram tratados extremamente importantes sobre a visão, nomeadamente sobre a percepção da cor. por exemplo o tratado de Goethe sobre a cor, e outros anteriores a ele. São os alquimistas que começam a fazer os primeiros ensaios sobre a percepção das cores. Fomos todos educados para dizer que é o olho que vê. Todo o sistema óptico, de facto, regista imagens, as sensações de imagens, ou seja, um conjunto de sensações sob a forma de imagens. Na audição, esse conjunto de sensações é transformado em estímulos auditivos. A visão transforma as sensações em imagens. E há órgãos especializados para esse fim. Na tradição alquímica isso não é verdade. O importante não é capacidade de olhar o mundo ; o importante é a capacidade de o ver. Ora, o órgão, o sistema de percepção, só é capaz de olhar, mas não é capaz de ver. A função cria o órgão, ela sim, ela é capaz de ver. É por isso que, no Oriente, se chamou a essa função que criou o órgão de visão “terceira visão” – não é igual aos dois olhos, mas forma um triângulo com eles. Na tradição alquímica, cada órgão humano estava ligado a um princípio planetar, a uma função. O fígado, por exemplo, estava ligado a Júpiter. Fígado em inglês diz-se “liver”, que tem a ver com o verbo “to live” – viver. Marte representou sempre no ser humano o princípio agressivo, de individuação, de distanciamento : “Eu aqui, tu aí!”. este princípio serve para criar a distância do “eu” relativamente ao mundo. O princípio jupiteriano tem a ver com a noção de compreensão do mundo, mesmo na tradição grega. Sob a influência dos romanos, todas estas noções adquiriram um outro sentido. A cultura romana é já uma cultura de plágio. Se o romano estava com maus fígados, só havia uma coisa a dizer :”Júpiter tinha maus fígados!”. Porquê ? Porque na tradição greco-romana, Júpiter era o deus do raio e da tempestade. Antes da tradição greco-romana, Júpiter era o princípio do raio, no sentido de que era o raio que criava uma ordem. Júpiter era aquele princípio que, no início dos tempos, pegava no caos, percorria o caos e instaurava-lhe uma ordem. Era um princípio ordenador. Portanto, esta noção de um impulso criador que ordena, que é típico de Júpiter, não pode ser confundida, mas os romanos confundiram-na com Marte. Na mitologia greco-romana, Marte tinha a função ligada á adrenalina, à força muscular e à agressividade. Cada órgão tem um princípio planetar na sua origem, e que o produz. Nesta perspectiva, há uma força, ma arquétipo, uma função ”marte” no cosmos que cria órgãos ou exprime no universo uma forma de estruturas que consubstanciam, organizam o princípio de separação, da força, da energia, da agressividade, e assim sucessivamente. Assim, quando os antigos falavam dos sete planetas sagrados, ou quando os alquimistas falavam dos sete metais sagrados, eles não falavam apenas para o nosso universo, mas para todo o universo. Essas sete forças existem em todo o universo – não são características do sistema solar, nem do planeta terra. Por isso, na tradição alquímica, quando falamos de coração, não é o coração-órgão, mas sim a função criadora, ou função organizadora que está por detrás do órgão do coração. Quando o coração aparece dividido em quatro câmaras, isso correspondia ás divisões do ciclo anual, na natureza. O coração possui dois momentos, ou movimentos : um corresponde á economia da morte, o outro ao renascimento, típico da simbólica da Páscoa. Por isso se diz que o processo da alquimia não é apenas um processo laboratorial, mas via usar o coração humano como recipiente, ou espaço de reprodução de todo o processo de laboratório. O “processo de laboratório” era uma metáfora aplicada ao ser humano, implicando os princípios Sol e Lua, e a relação entre eles. O Sol está assimilado ao Espírito Santo, e a Lua ao lado obscuro do coração. Na simbólica do ciclo do Graal, temos um cálice que recolhe o sangue de Cristo. A questão que se põe é : “Que sangue é esse que transfigura o coração ?”. Na alquimia passa-se a mesma coisa, há uma transfiguração, a “transmutação do coração” através de um princípio de mutação vindo da área da consciência, e não da natureza. Ou seja, não é possível realizar um processo de unificação da natureza sem que haja uma correlação com o princípio de unificação do indivíduo. Não há unificação do indivíduo sem uma correspondência com a experiência de unificação da natureza. No ser humano o coração é equivalente ao sol, o ser humano é representado como um pequeno universo. E é por isso que o coração é considerado órgão-rei, central, porque existe um sistema vital, um sistema funcional, não definível em termos de leis biológicas, que mantém o sistema em funcionamento.

Na natureza não existe um átomo, uma molécula, uma sub partícula atômica que não tenha o mesmo ritmo. Na natureza não existe nenhuma estrutura que não seja animada por um princípio organizador. A matéria não se encontra organizada segundo leis cegas, mas por princípios organizadores. Ao alquimistas definiam que, no ser humano, existe um conjunto de princípios organizadores, assimilados aos sete planetas tradicionais, que constituem as grandes leis do desenvolvimento humano. A estação ideal para esta constatação é a Primavera, o equinócio da Primavera. Está dito em todos os tratados de alquimia. Diz-se sempre que a obra física da alquimia começa na Primavera, na Páscoa, porque nesta época há uma nova aspiração para a transformação do campo de consciência, há um impulso que varre a natureza e nos arrasta, não somente em termos biológicos, mas sobretudo em termos de consciência. O alquimista, na proximidade de cada Primavera, sente a necessidade de se auto-realizar plenamente. A Primavera anuncia um ciclo de auto-transformação e, por conseguinte, o início do trabalho do alquimista, seja no laboratório, seja em si mesmo, começa, sob o impulso da natureza renovada, em termos de campo de consciência. De onde vem este princípio ? Se remontarmos ao Egipto, vemos que todas as divindades solares egípcias não têm qualquer relação com o coração, diretamente. Mas o gesto que fazem quando falam de consciência é o de abrir os braços em triângulo para o alto. E porquê ? Porque se sabia que a consciência é algo tangencial à estrutura do cérebro. Inicialmente, essa linha é tangencial. Depois, vai sendo cada vez mais integrada. Dir-se-ia que há a descida de um princípio de consciência ativo, que se chama “lótus de mil pétalas”, na tradição hindu, é a figuração de um centro piso-energético da consciência propriamente dita. E quando se criam as condições psicológicas, as chamadas “condições meditativas” da consciência psicológica, esse princípio – o chamado raio de Júpiter, reorganiza o ser humano, como se o ser humano fosse um caos inicial. Neste tipo de escola, parte-se do princípio que o ser humano, neste processo de iniciação é, à partida, um caos física e psicologicamente, e que este princípio de consciência vai organizar esse caos. Assim há a iniciação psicológica do ser humano até um determinado ponto, e quando esse ponto é atingido, é a ação da consciência propriamente dita que age, que atua e transforma.

Quais são as condições para a ação desse princípio de consciência no ser humano ? A experiência diz não ser possível ao ser humano, por iniciativa puramente psicológica, fazer um processo de mutação do seu campo de consciência, ou seja, transformar-se num ser humano a sério, passando de uma ser biológico para um ser humano real. A alquimia diz-nos que o ser humano pode evoluir em termos de civilização, indefinidamente. Simplesmente, o produto final será sempre idêntico no culminar de uma determinada civilização. Isto é, qualquer civilização produz um ser humano civilizado no seu culminar, mas em qualquer civilização é sempre igual à anterior. Acreditamos que o homem evolui através da sua experiência social e histórica, mas o ser humano que atinge o máximo das suas possibilidades evolutivas não vai mais adiante, no seu processo de humanização real. O ser humano pode ser uma espécie biológica avançada, que tem a capacidade de auto-aperfeiçoamento até um determinado nível, mas precisa de completar o trabalho da própria natureza, para ser realmente humano. A civilização é incapaz de levar este processo de desenvolvimento humano até à sua etapa final. É o próprio ser humano que vai ter de completar esse processo.

A alquimia tem muito que ver com o mito de Prometeu. Prometeu é castigado pelos deuses, porque teve o gesto generoso de tirar o fogo aos deuses e de o dar à humanidade. Pelo menos do ponto de vista simbólico, mítico, o início do desenvolvimento das civilizações deu-as com o fogo. No mito grego, Prometeu arrebatou o fogo do céu, que era um segredo dos deuses, e divulgou-o à humanidade. O que é que o alquimista faz ? O alquimista também vai buscar o fogo do céu em si mesmo, encarna-o, no sentido em que passa por um processo de encarnação da consciência. Porquê a importância deste processo de encarnação da consciência propriamente dita ? O ser humano é uma espécie biológica incompleta – ele não exatamente um ser humano ; precisa de outro elemento da natureza, muito mais potente, que assegure a sua completude, a sua totalidade, a sua auto-realização. De facto, na alquimia, é esse princípio de redenção, de transformação, que é integrado no processo orgânico e psicológico.

A transformação começa no coração. No início, segundo a psicologia da tradição alquímica, o coração representa duas coisas. Representa a psique humana, aquilo a que se chama “identidade pessoal”, ou consciência de si próprio em termos psicológicos, e tem dois modos de funcionamento : um modo operativo, que é residual, e outro, ligado á ação transformadora. O lado do coração que tem a chamada “pulsão de morte” está ligado á memória, a tudo o que é passado, a tudo o que é residual enquanto passado. O outro lado do coração representa outra instância, ligada á consciência. Na área da memória, há a memória propriamente dita, o passado, mas também o futuro, isto é, a nossa memória projectada enquanto desejo, criando um futuro imaginário ou de fantasmagoria. O outro lado do coração é a porta, no psiquismo humano, da consciência pessoal psicológica que tem afinidades com o processo de transformação. No ser humano há dois processos : um ligado ao passado e às expectativas do futuro imaginário, e um outro ligado à ação transformadora da consciência, ou seja, o processo de humanização propriamente dito, que está ligado ao presente, ao momento. Para s e ser, para termos um sentimento de ser, enquanto indivíduo, não podemos recorrer ao passado nem à projeção, e isto chama-se meditação, potenciando o lado solar do psiquismo humano, que tem fortes afinidades como princípio de consciência. Nas escolas de topo da meditação, que são escolas transpsicológicas que não acreditam na evolução psicológica do ser humano, e consideram a consciência psicológica como um beco sem saída, os processos meditativos da consciência têm que ver com lugar que a consciência ocupa. A noção de ser não se cria nem se estrutura, nem a partir do passado, nem a partir da auto-projeção – ela cria-se na condição não-dualista do ser.

Em termos de metáfora, o nosso psiquismo é uma espécie de Lua Nova, um lambisco de Quarto Crescente, enquanto a consciência total é a Lua Cheia. è por isso que a simbólica da Lua Cheia tem muito que ver com o processo da consciência. Dir-se-ia que o ser humano, no início do processo, é uma Lua Nova, escura. depois, quando o processo de transformação começa, vai aumentando até se converter numa Lua Cheia que reflete plenamente a luz solar. Há uma série de tratados alquímicos em que este processo está muito bem descrito, dizendo qual é a atitude que se deve ter face ao processo de transformação pessoal. E tudo é definido pelo vazio do coração, ou seja, o coração torna-se recipiente de todas as transformações. E isso quer dizer o princípio de consciência e o coração constituem dois pólos que se atraem irreversivelmente, desde que o indivíduo crie as condições psicológicas para esse casamento, ou núpcias alquímicas. É um processo em que o princípio de aspiração da consciência psicológica do momento se pode unir ao princípio de consciência propriamente dito. Isto quer dizer que a maior parte dos seres humanos não tem consciência, mas é um “simulacro” de consciência, que é a consciência psicológica em geral. Se estivermos presos da memória pessoal e da projeção fantasmática do futuro, não há espaço para um novo tipo de consciência no espaço do coração; criar, pela aspiração, disponibilidade e abertura ao novo, aqui e agora – isso é meditação. E isto é a alquimia – esta é a alquimia que nos transforma e permite encarnar plenamente a consciência.

Associação Hermes - VQ

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