domingo, 15 de abril de 2012

Bestiário Alquímico

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 363, dezembro/2002

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

A visão profana sempre colocou em dúvida o fundamento da alquimia, alegando ser impossível a transformação dos metais comuns em ouro, e enxergou os alquimistas como indivíduos exóticos que, obcecados por essa ambição, deixaram-se perder num caminho pseudocientífico.

As recentes descobertas da física quântica, entretanto, mostram ser eivados de preconceito os juízos que a ciência sempre professou contra os saberes mágicos e ocultos que, mesmos quando distantes das verdades científicas, em última análise, muitas vezes revelam uma acurada intuição acerca das leis da natureza.

O físico alemão Max Planck (1858-1947), cuja “Teoria Quântica” lhe rendeu o Nobel de Física de 1918, escreveu: “Atualmente, após o advento da radioatividade artificial, não nos parece mais impossível a invenção de um processo que afaste um próton do núcleo do átomo de mercúrio, e um elétron de seu último nível orbital, o que transmutaria esse átomo num átomo de ouro”. Terminantemente, Planck encerrou a celeuma revelando não ser a questão alquímica um falso problema. Para transmutar metais em ouro, todavia, seriam necessários gastos exorbitantes com experimentos a envolver um acelerador de partículas, que nem de longe seriam compensados pelo ouro produzido.

Não nos preocupa nesse artigo, entretanto, a reabilitação da alquimia no campo da física. Interessa-nos, sobretudo, a simbologia alquímica que, situada no plano cosmológico, oferece uma interpretação possível, ainda que hermética, aos fenômenos da natureza como um todo. Sobretudo, importa-nos o conteúdo psicológico de seu complexo simbolismo.

Os antigos místicos, atentos às experiências íntimas reveladoras, sempre compreenderam que o verdadeiro laboratório alquímico fosse o próprio homem. Analogamente, viam nas operações e no trabalho projetado sobre a matéria a possibilidade de cada ser transformar-se interiormente. Crendo-se essencialmente unidos ao cosmos, os alquimistas entendiam que, mediante uma paciente busca pela perfeição, poderiam realizar a Grande Obra, cujo resultado último, a contribuir com os desígnios da Criação, seria a redenção de toda a humanidade através da espiritualidade despertada em cada ser vivente. Para tanto, um dos caminhos alquímicos propõe que se encontre ou se fabrique a Pedra Filosofal, agente catalisador das transmutações, capaz de fazer do vil metal um metal nobre, igualmente o elemento propiciador da transformação de cada um de nossos aspectos pesados e brutos em algo que, intrinsecamente depurado, pode nos transpor a uma nova realidade anímica, transcendente e nobre.

Para designar a matéria a ser tratada no laboratório, os alquimistas servem-se de uma profunda simbologia e a expressam sob diversas formas. Muito comum, por exemplo, no imaginário alquímico, são as figuras de animais conhecidos ou fabulosos, cujas propriedades e características dizem respeito às diferentes fases e degraus por que passa o alquimista em sua perene busca pela grande transformação. Há uma variedade quase infinita de imagens bestiais distribuídas pelos textos alquímicos clássicos, e vale dizer que seu conjunto guarda a sete chaves as intrincadas verdades que os alquimistas devem decifrar em sua senda pessoal. Impossível tratar aqui de todos os animais que assumem valores alquímicos; falemos, pois, dos principais.

Comecemos pelo coelho, que representa o conhecimento vulgar e profano. Ele é rápido, saltitante e esperto. Sua companhia, os contos de fadas não desmentem, é inconveniente, dado o seu comportamento desorganizado e imaturo. O coelho é o não-iniciado, aquele que fala de si contando vantagens, e que mente bastante por ser oportunista; de cartola na cabeça, chega a apresentar-se como mago ou alquimista, mas, por ser superficial, não passa do embusteiro que dificilmente sabe mesmo do que é que está falando. Visto nas gravuras alquímicas quase sempre entrando em buracos ou cavernas, ele serve, entretanto, para nos indicar a passagem para o ambiente inacessível, para os mundos escondidos. Por ser um animal fraco, seu sacrifício simboliza a morte do caráter infantil em prol do amadurecimento futuro.

Uma vez que brote o trabalho alquímico, deparamo-nos com os répteis e batráquios, animais que rastejam ou que têm pele viscosa e escorregadia, que chegam a assustar ou inspirar certo medo, muitas vezes infundado. Tal classe representa a matéria em seu estado virginal e bruto, caótica e ameaçadora, exigindo do alquimista que a conheça, que domine seus instintos. Notáveis neste particular são as salamandras e os lagartos; miticamente associados ao elemento fogo, representam o primeiro degrau da transmutação alquímica, a calcinação, que se traduz pela queima da matéria bruta no atanor (forno dos alquimistas) ou no cadinho, recipiente que recebe o material a ser inicialmente transformado. Já os sapos e as rãs, animais crepusculares, terrestres e aquáticos, assumem aqui a contraparte da experiência ígnea, e simbolizam a dissolução, segundo degrau da Grande Obra. Por preferirem os recantos úmidos e sombrios, e por passarem por metamorfoses em sua vida anfíbia, sapos e rãs, ligados ao elemento água, psicologicamente revestem-se dos valores guardados no interior do alquimista, que lhe servem de complemento anímico, isto porque está no mundo das sombras a real possibilidade de integração entre o ego e as forças latentes do inconsciente. Sapos e rãs, por isso mesmo, relacionam-se ainda à matéria informe, ora queimada e diluída, que requer moldagem e lapidação. Os peixes, que submersos vivem, também simbolizam o psiquismo profundo que oculta valores a serem despertados. A indiferenciação entre cabeça e corpo desses animais faz deles um símbolo integrador entre os extremos, capaz de inspirar e fazer vir à tona as potencialidades guardadas nas regiões abissais da alma.

O próximo degrau, coagulação, encontra-se bem representado por vários animais, especialmente o lobo. É necessário agora retirar das águas em que se dissolveu parte do ego um extrato a ser trabalhado; isto é, é oportuno que se valorize este ou aquele aspecto, visando passo a passo à transformação completa, exercício para uma vida inteira. O lobo é um animal terrestre e noturno. Por enxergar bem à noite, encarna o protótipo do herói guerreiro que adentra nas cavernas para delas sair mais tarde, revigorado e forte. Hades, por exemplo, veste-se com uma capa de pele de lobo, a fazer dele um animal ctônico, morador do mundo inferior. Agressivo e selvagem, ligado ao elemento terra, o lobo faz sangrar a consciência e engole os corações, vide deus Anúbis da mitologia egípcia, que no tribunal dos mortos devora os corações impuros que não merecem renascer.

Essas duas operações, dissolução e coagulação, sintetizam o dinamismo presente por todo o processo alquímico, e estão firmadas pela máxima Solve et Coagula, encontrada em vários manuscritos e gravuras.

O quarto degrau é a sublimação. Em termos químicos seria a passagem direta do estado sólido ao gasoso. Psicologicamente, longe aqui do conceito psicanalítico, sublimar é saltar etapas na transformação pessoal por meio de experiências diretas que propiciam ao ego a sua ascese. Isto é, depois de calcinar, dissolver e coagular repetidas e infinitas vezes, há momento em que o extrato se volatiliza, quando o ego atinge um estado anímico superior, propício às primeiras grandes revelações. O pégaso é o melhor representante dessa etapa. Ligado aos elementos ar e água (embora provido de asas, seu nome provém do grego pege, fonte), esse cavalo alado mitológico, nascido nas fontes do Oceano, traduz a relação entre profundidade e elevação. É ainda símbolo da inspiração poética e, nos céus, mistura-se às nuvens portadoras de água fecunda que sempre regam a terra. Suas patas são ferradas com ouro, suas rédeas são colares de pérola, e sua figura fantástica é signo do estado de pureza alcançado pela sublimação do ego que, ora volátil, pode finalmente se inspirar e vislumbrar das alturas a sua exata dimensão. Outras imagens bestiais do processo de sublimação costumam mostrar aves de rapina derrotando o leão ou mesmo carregando um sapo em suas garras a significar a vitória do estado sutil sobre o denso, do espírito sobre a matéria.

Isto nos lança ao quinto degrau, o da mortificação. Nesta fase da Opus Magna surge o leão, besta solar, complemento e primo-irmão do lobo. Ele devora e transforma a “nova consciência”, ora sensivelmente tocada pela experiência vivenciada no nível anterior. O leão, muitas vezes alado, feito esfinge, encerra os enigmas da espiritualidade aflorada à luz da consciência a partir da semente de materialidade que vem sendo desde o início trabalhada. Rei dos animais, o leão é símbolo de força, de autoridade e inteligência. Mas ele está aqui para nos engolir por inteiro, para fazer morrer o ego inflado de modo a vomitá-lo mais tarde, após tê-lo digerido num processo metafórico de morte, dor e renascimento.

Sexto degrau: a separação. O pelicano, ave cuja lenda conta que se fere e se mutila com seu bico para alimentar com o próprio sangue seus filhotes, expressa a idéia de auto sacrifício como etapa necessária para se atingir a perfeição (que, a bem da verdade, nunca se alcança). Neste particular, assemelha-se à fênix, pássaro mítico que se deixa consumir no fogo para depois renascer das próprias cinzas. A presença de ambos os pássaros bem indica que a morte anunciada aqui, da qual devem ser separados os elementos que serão transformados e reunidos, é uma experiência transcendente. Tanto o pelicano quanto a fênix são emblemas que, através da morte, anunciam a ressurreição, sugerindo a imortalidade da alma em seu eterno caminho de doloroso aprendizado.

A águia, rainha das aves, de natureza solar, coroa os estados anímicos superiores e traduz a experiência do sétimo degrau: a síntese. A águia é símbolo da ascese, da percepção direta e arguta que nos faz perceber a divindade em nossas almas; muitas vezes é vista como um pássaro bicéfalo a representar a união dos opostos complementares, ou a sizígia alquímica, fusão perfeita entre prata e ouro alcançada por meio da Pedra.

Mas os manuscritos alquímicos não fazem mesmo questão de ser simples. A evocação dos aspectos da Obra podem assumir múltiplas formas, bizarras e inauditas. Não nos esqueçamos da figura dos dragões. Mitologicamente, são monstros-répteis alados capazes de soltar fogo (calcinar) pelas ventas, que invariavelmente guardam tesouros ocultos e segredos filosofais, como por exemplo, a fonte do rio Estige no alto das montanhas, cujas águas, se bebidas na nascente, conferem a imortalidade. Representam ainda as bestiais aberrações que trazemos latentes e que devem ser dominadas em nosso mundo interior. Por vezes, manuscritos alquímicos nos mostram um duelo entre dois dragões, um alado e outro áptero, a designar a luta entre os princípios fixo e volátil, entre o o enxofre e o mercúrio, por exemplo. Dragões são ainda o elo entre os planos superiores e inferiores da escalada alquímica, e perpassam, da cabeça à cauda, todos os seus níveis.

Há ainda no bestiário da alquimia situações em que os animais não representam degrau algum, senão outros processos ou ainda uma de suas três fases maiores, dentro das quais os sete degraus se reapresentam. A primeira delas é o nigredo, condição em que a matéria-prima a ser transmutada está perdida e indiferenciada, sendo preciso que o alquimista resgate de seu mundo sombrio os potenciais a serem transmutados. O corvo negro, também o lobo preto, bem nos indicam essa fase. Seguem-se os trâmites que envolvem lavagens, filtragens, decocções, queimas, reações etc, até que se atinja o albedo, quando a alma se esclarece na aurora da iluminação psíquica, processo este representado pela brancura do cisne, ou ainda por meio de uma águia branca. O albedo, em termos psicológicos, expressa nosso confronto com a anima, ou seja, com o princípio feminino e intuitivo subjacente ao psiquismo como um todo. A natureza dessa etapa é lunar e ela nos guiará por meandros obscuros (também por seus sete degraus) à terceira e última fase, de caráter solar, conhecida por rubedo. Geralmente, uma águia branca e outra vermelha, ou um rei vermelho e uma rainha branca, surgem juntos para simbolizar esse momento. Isto porque somente pela união dos opostos complementares é que se pode encontrar a Pedra, para com ela alcançar a síntese da Grande Obra.

Neste sentido, o bestiário alquímico constitui-se num extraordinário roteiro para a investigação da matéria alquímica. Expõe toda a “arte de transmutar” por meio de alegorias e pictografias de animais, cujas qualidades, uma vez dominadas, conferem ao alquimista os ensinamentos que seus elementos representam, bem como os poderes necessários para operar com mestria a verdadeira transmutação interior. Mais uma vez, os bichos se alegram por ajudar os homens, ainda que, infelizmente, nem sempre estes saibam compreendê-los.

http://www.amigodaalma.com.br/​2009/12/28/bestiario-alquimico/

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